SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA

Hino primaveril para declamar aos gritos

 

 

Do alto da minha desfaçatez

Eu clamo!

E clamo aos gritos, eufórico, em júbilo:

VIVE!

 

Na hora do meio dia

sobre o mar cintilante

ébrio de azul e diamante

eu clamo:

VIVE!

 

Vive plena, total e de inteira mente.

Vive com todos os adjetivos que quiseres,

exagera nas hipérboles,

fica enfático, exaltado, um disparate:

Mas vive.

 

Vive o dia, vive a noite.

Vive o difícil, vive o fácil,

atira-te ao mar, deita-te no campo,

vive muito, vive forte,

inspira tudo, retém, expira.

E continua.

 

A vida é tua.

Para ti.

Tu importas.

Feliz dás-nos mais.

Feliz tornas-te bom.

A tua alegria é de deus,

faz azuis as flores nos campos,

as árvores abundantes,

as crias gordas,

os ovos de ouro.

 

Vive.

Só te peço isso.

Vive.

Cynthia, Cynthia, Cynthia!

Poema eufórico à beira da apoplexia

 

 

Ó Sintra à noite...

Ó natura decantada pelos holofotes...

Ó natura iluminada, quadro precioso da sala dos deuses...

Ó encantos de endoidar só de ver...

 

Ó Sintra iluminada à noite,

Ó céu que para mim te abres,

e me mostras teus cantos,e me cantas teus encantos,

e me dás ambrósia, pura ambrósia, doce ambrósia...

 

Ó Sintra com luzes na noite da Lua!

Ó céu aberto para mim,

ó anjos que me levam aos ombros e me entoam salmos:

Aleluia bem-vindo! Aleluia bem-vindo!

 

Ó Sintra derramada na noite,

ó repasto dos deuses a mim dado,

ó mel dos olhos que chega ao peito,

fazes-me filho de deus, filho mesmo de deus, grande filho de deus.

 

Ó noite de Sintra às luzes exposta,

ó Cynthia, céu aberto a nutrir-me a Voz,

ó divino dado aos homens,

és grande arte de deuses estetas e jardineiros...

 

Ó Sintra,

- e encantos de natura à noite iluminados -,

ó céu para mim aberto,

ó Cynthia...

VIVA!!!

Na noite escura da minha alma

pingam de ouro as sílabas da pítia:

Amor...

Saber...

 

Sem onde me agarrar,

recordo à náufrago a costa firme,

o destino maior.

 

Enredado nos pesos que soterram,

na voz firme da verdade inspiro a raiva para lutar,

para tirar o corpo debaixo, desfraldar as asas,

e ir com força para perto do deus que reza devagar a vida grande.

 

Morre....

ó mundo pequeno de dentro de mim,

deixa-me chegar à Vida

e ser o fruto querido que os deuses amam.

Pressa

 

 

Construo a minha Casa lentamente...

Não me sento às raízes a puxar, esticar.

Deixo que um Tempo lento envolva a Árvore da Vida,

e do abraço do Tempo e da Árvore nasça o fruto,

a Casa,

a Casa bela e forte onde os seres da floresta gostam de ir,

porque lá se canta uma música bela,

e uma grande e querida mulher ri alto,

a encher os recantos da sua energia sã,

seu sopro vital.

 

Construo a Casa lentamente,

só peço ao Tempo que labute bem,

não lhe ordeno o projeto nem que me poupe a fadigas,

e disponho-me sempre, no fim, a não ter Casa, a não ter nada,

a ser Dele o pobre escravo,

para aqui e para ali jogado.

 

Construo a Casa lentamente,

dou ao Tempo a sua hora.

À pressa, sei que não me enfeitará com um sol a janela,

não terei uma luz que inunde a floresta e jamais se apague,

que jamais se apague pelo tempo de muitas vidas.

 

Construo a Casa lentamente...

trump e a espada

 

 

em dor, choramos a olhar trump... até erguer a espada e entrar no combate

choramos a olhar trump... até aceitar o território que habitamos, luz e sombra em tensão de morte

choramos a olhar trump... até subir ao nosso lado da barricada e segurar a arma que nos cabe

 

como sempre, agora é a hora de empunhar a espada e de dizer:

Presente!

como sempre, agora é a hora de cuidar do nosso jardim, de lhe dar a terra que o torne bosque florido ou, talvez um dia, um castelo no topo da colina

 

no afã da luta não choramos, cerramos os dentes e alegramo-nos com o brilho de tantas espadas juntas

na terra e Acima

Céu azul sobre mim.

Infinito.

 

De súbito intenso,

mergulho no azul

e transbordo.

 

Ainda eu,

mas mais do que eu,

fico mais perto da Vida,

Vida azul, infinita.

 

Pássaro no céu, voo.

E de tão alto,

vejo tudo com distância.

E nada mais importa,

e tudo está certo.

AMO-TE, Ó ADORADO WALT!

 

 

Sentir que a estrada É.

Sentir que o caminho É.

E sentir que não há mais que a estrada,

e não mais que o caminho,

e que os portos são campas para míopes onde apenas respira o meu cansaço.

 

Como se andar fosse tudo,

como se fosse sem remissão andar,

como se o sentido

– por inteiro –

fosse crescer e ir em frente,

sem nunca poder chegar,

sem haver onde chegar.

 

Como se tudo fosse a estrada

- e a tristeza recuar -,

como se o mais fosse lixo e vida a dar ais.

 

O prado vasto está aí, estende-se,

urge avançar, atravessar.

Nas nossas costas nascem pântanos,

movediças lamas onde falta o ar,

e onde não estão as vidas belas,

as histórias altas que,

por aqui,

deixam o dia feliz.

 

O prado vasto está aí, estende-se.

Urge avançar. Atravessar.

Viajar

 

 

Ó longes,

Ó vozes que a mim chamam,

Ó gente estranha de veste esquisita,

Ó vida de sonho que dás fervura,

Ó marítimas distâncias,

Ó terras muito ao longe,

Ó Índia, ó Ásia, ó vidas de chinês...

 

Ó longes,

Ó cantos altos que gritam por mim,

Ó marujo que chora a rogar para ir,

Ó vontade soldada ao peito a ensanguentar as horas,

Ó apetecer imenso que não deixa ficar por aqui,

Ó estepes, ó trópicos, ó picos,

quero ir, quero ir, quero ir!

 

Ó mares dos trópicos com cocos, negros e malárias,

Ó suores africanos debaixo da ventoinha,

Ó tremor do querer,

Ó paixão pelo meio,

Ó apetecer ir agora mesmo...

Levem-me já, levem-me já, levem-me já!

 

Ó esposa que não tenho e quero mais,

Ó vontade de bardamerdar isto tudo,

Ó vidas mais giras que hei-de lá ter,

Ó vida a ferver que hei-de lá ter,

Ó fúria navegante de embarcar já

, E ser grumete, e ser turista e ir para lá...

 

Ó longes, ó distância,

Ó planícies do desejo,

Ó vontades de viver mais,

Quero ir, quero ir, quero ir!

Pai

 

 

A minha rapariga pequena

enche-me os dias de um amor irrequieto,

cheio de guinchos, gritos e carinhos,

uma selva de amor na minha vida.

 

A minha rapariga pequena

enche-me a vida de mar salgado,

com muitas ondas, ventos e recantos mansos.

 

Banho-me em ti, meu amor,

e o meu coração exulta,

cheio de raiz na vida

e vontade de estar cá por ti.

 

Peço, ó vida, deixa-me viver mais um tempo,

adoro vogar nas águas ao sabor deste amor,

para cá, para lá, para o fundo,

vida imensa que rebenta na areia,

plena de espuma, conchas e estrelas do mar.

 

Deixa-me estar mais um tempo,

e sorrir assim.

Os fogos que ardem nos bosques queimam-nos o coração com chamas de impotência.

 

Sentimos o chiar das árvores dentro dos ossos,

E choramos pela terra que só pode sofrer.

 

Os homens são formigas na cara do adamastor,

negro e rubro,

Mas lutam ainda, lutam até ao fim.

 

Lutamos a seu lado, a cada dia que passa,

As chamas que dilaceram o coração humano:

A dor, a ganância, a ignorância e o esquecimento do Ser.

 

E por mais que os fogos ardam,

Lutamos e lutaremos.

Estaremos lá, pés firmes no solo,

Prontos a viver no meio das chamas.

 

Assim, sabemos, o verde voltará a descer sobre os campos,

E o céu será sempre azul.

Pudesses, vida, ser só prado e mata,

canto e cor.

 

Mas és homem também,

e um veneno alastrou-te no corpo,

a contaminar as águas.

 

Gostaria de passar por ti, e como amante perfeito,

só me deleitar com vales e sonoras correntes de água.

Mas ai, duas vezes ai,

na volta do corpo temos poços de carne azul,

abismos saturados de coisas vis.

 

Por isso perdoa-me se choro,

perdoa-me se grito e me espojo e não vejo o luar.

Perdoa-me se arranho o rosto e quase o desfaço nas pedras:

Não é por desamor ou por te querer mal...

É por te amar demais.

Chove.

Copiosa e sonoramente chove.

Em tumulto e riacho escorrem as goteiras.

Os gatos fugiram.

Debaixo dos carros, dobrados e tensos, esperam a aberta.

 

Os humanos olham,

apreensivos e satisfeitos,

o desfazer do céu, o toque e a tomada de posse.

Na terra empapada descobrem rastos do membro do pai,

ato de amor que recria.

 

Chove.

Na terra empapada houve-se o torpor,

o torpor que germina.

Sublime

 

 

Ó cataratas...

Ó vida imensa a cair rocha abaixo...

Ó poder imenso de água despenhada...

Ó emoções de estar a ver tudo,

água com fome de abismo e turbilhão...

 

Ó cataratas imensas...

Ó espetáculo dos deuses...

Ó paraíso de água a correr...

Ó imensidão que afaga e faz tremer...

 

Ó cataratas,

ó água com sede de abismo e queda,

ó despenhadeiros brancos de espuma,

ó coisa grande – pões-nos nada,

ó coisa grande - impões respeito,

mostras bem a força nenhuma que temos nos braços...

 

Ó cataratas do Niágara, do Iguaçu e todas,

ó despenhadeiros brancos de espuma,

ó água com sede de abismo,

ó tamanho que mostras altura nossa,

ó senhor que metes respeito,

ficamos em sentido e numa vénia sem fim...

 

Ó cataratas,

ó imensidão branca de água que se afunda,

ó poder dos deuses:

Graças, graças te dou,

visão dos céus,

espanto do corpo,

prazer e medo do estar.

 

Graças!

Na noite imóvel e quente

ouvem-se as vozes de todos os anjos.

 

Perdoa-me vida

a minha pequena mente,

que corre de aqui para ali,

e passa ao lado de tudo.

 

Perdoa-me vida,

afasto-me de ti com os meus passos apressados,

olhos no chão e barriga apertada.

 

Imóvel na noite quente,

flutuo em deleite sem fim.

Reencontro a vida plena,

e deixo-me morrer ali.

Alma-Soma

 

 

Dançamos de olhos fechados.

Para ver as Estrelas.

Dançamos de coração nas mãos.

Para sentir a Deus.

Dançamos de lágrimas nos olhos.

Para lavar o Coração.

Dançamos em chama, eufóricos.

Para explodir de Prazer.

Dançamos com a alma no corpo.

Para o Consagrar.

 

Divinos,

somos da terra e do céu.

Os outros:

irmãos, companheiros.

 

Num oceano de bênção vogamos,

a alegria eleva-nos os pés,

o amor toca-se no ar.

 

Dançamos de olhos fechados.

Para ver o Céu.

Mar calmo,

Floresta azul,

Dia suave dentro de mim,

Tempo lento, parado nas árvores, no peso das pedras, no cão que passa.

 

Tempo lento dentro de mim,

Momento sem fim,

Respiração pausada,

Corpo em planalto, suspenso.

 

Estou agora fora do tempo,

Ontem está longe, amanhã não faz sentido,

Sou um camponês depois da colheita, sentado na eira,

Mas não há colheita, só um camponês sentado na eira.

 

Posso ir para o piano e tocar,

Escrever este poema sussurrado,

Lavar a louça ou sentar-me no pc:

Mas respirar por agora chega,

Sentado na eira a olhar para nada.

 

A Paz enche o peito, a boca, os pés, os poros,

Paz com corpo, imensa e doce,

Não falta nada.

marioresende@almasoma.pt