Oração

 

 

De frente para o luar,

de frente para a praia ao luar,

para as ondas onde o branco viceja no escuro,

para a maresia e o marulhar que é canto intenso,

rezo ao deus profundamente agradecido,

em encanto múltiplo de natura e vida,

e rezo como se apenas hoje se tivesse iluminado o sol e a terra girado,

como se apenas hoje se houvesse deixado um longo limbo,

e pela primeira vez irrompesse do peito humano o canto puro e a ação de graças.

 

Rezo como se deus existisse e tudo fosse certo,

como se nós por cá fossemos bonecos do seu mandar,

como se jamais uma filosofia houvesse sido escrita,

como se ainda não tivesse chegado a tese que nega os olhos e o coração,

como se os grandes temores e as fortes suspeitas jamais tivessem acontecido a deixar semente e fruto.

 

Rezo todo, com a mente e os pés, as mãos, o coração,

ajoelho-me por dentro e profiro grande ação de graças,

e toda a filosofia - e a pobre teologia - não tomam do instante o calor supremo,

não me iludem o sublime de rezar ajoelhado por dentro.

 

Celebro o minuto como imenso e divino,

milagre da hora, felicidade aqui pousada.

 

Rezo ajoelhado por dentro,

ergo ao céu ação de graças:

Isto é vida alta que exulto depois,

o suco do suco,

o melhor de tudo.

dos meus Sonhos vê-se o Palácio,

Dourado, Dourado.

 

dos meus Sonhos, no cimo do monte alcantilado,

repleto de nuvens e anjos,

o Palácio.

 

vou Lá morar um dia,

senhor do Sim e do Não,

Dourado também.

 

dos meus Sonhos vê-se o Palácio,

o Homem...

Olho e nada se agarra,

Tenho olhos translúcidos por onde as coisas passam,

Nada fica,

Vazio.

 

Como se fosse só olhos,

E tudo entrasse e saísse,

Sou um buraco atrás deles,

Vazio,

Lago de águas em espelho.

 

Olho para tudo e não faço barulho,

O amor vem e nem lá me agarro,

O poema escreve-se e não me prendo lá,

Deixo passar e vou no rio,

Agora digo Sim,

E depois Sim também.

Caminho nu pelas ruas,

Surpreso, Enlevado, Elevado.

 

Caminho nu pelas ruas,

E plenamente sou,

Não tempo, Não espaço, Não eu.

 

Caminho pelas ruas,

Antigo, Intemporal, Eterno.

Terapia

 

 

Abrem-se as portas

das lágrimas tão longamente guardadas...

 

Abre-se o coração e vê-se a dor antiga,

ouve-se o grito que precede as lágrimas...

 

Ó pessoa que caminhas a meu lado:

sou como tu,

caminho.

 

Deixa-me, por agora,

segurar o teu braço,

amparar a cabeça,

mostrar o horizonte,

e como chorar aqui...

 

Caminhamos

e caminhando chegaremos.

Não há tarde nem cedo,

no caminho nos preenchemos,

no caminho descobrimos o Ser.

 

Vem, vamos...

Uma vez que partimos

será difícil parar.

Um dia chegaremos

e voltaremos a partir.

 

Vem, vamos,

a estrada pertence-nos.

E como a vida não importa

hastearemos a bandeira no mais alto torreão,

a vitória é nossa!

Lá Longe, na Hora

 

 

Lá Longe, onde se desfaz o equívoco,

será com dor que ouvirei o teu choro,

será com pranto que ouvirei o teu choro,

e te verei padecer, arrepender...

 

Lá Longe, na Hora do a-Deus,

gemerão teus olhos e contigo as pedras e as flores,

porque não foste a flor que as tuas cores continham,

porque não deste ao jardim o teu recanto ensolarado,

e não foi mais feliz o nosso instante contigo.

 

Custa perdoar não seres feliz,

Custa perdoares-te por não ser feliz...

 

Por isso, na Hora, choraremos todos,

gemeremos em pranto,

porque o nosso jardim não teve a cor que podia,

porque nem sempre era fresca a água que escorreste,

porque pouco ouvimos o som cristalino que enche a floresta de cantos amados.

 

Mas amamos-te ainda, amar-te-emos sempre:

És igual a nós.

Por isso choramos, e choraremos sempre.

Aspiração

 

 

Na casa dos anjos quero lugar,

sentar-me ao pé das vozes puras,

quero erguer a vida como um canto matutino

onde resplandeçam joias raras.

 

Quero queimar promessas ocas,

desculpas,

viver o Homem de que entrevejo o Ser:

Cristal, Diamante, Luz.

Sem trevas ao leme,

sem bichos no comando.

 

Eu pouco importo, sei-o bem,

mas seguro firme o sonho,

o tamanho do que o Homem pode ser,

o deus solene, belo e miúdo de dentro de mim.

 

Prossigo, ainda que caia...

Vergaste-me a intempérie na casa do leme,

caia-me o mar sobre as mãos:

Lá as desejo manter ainda que me as cortem,

lá desejo voltar ainda que morra.

 

Repito, perdoem:

Anseio,

em dias claros,

o Homem de que vislumbro o Ser.

Transbordar

 

 

Na testa de ponte,

onde o vento arrebenta,

onde estala bruto o mar:

Gosto de ir!

 

Jorrar-me no instante,

dar-me sem limites e até ao fim,

não poupar nada, gastar tudo,

estar.

 

Quero afogar-me no segundo presente,

cortar a cabeça e viver,

ser o Tao a que a mente pede esmola,

e que de súbito se enche,

e que de súbito se oferece,

repleto de tudo e a transbordar,

uma e outra vez,

sem fim.

 

Vem Vida, vem sim,

desfaço-me e venho-me em ti,

dou-te o tutano do corpo,

não guardo nada:

Quero a testa de ponte,

a luta sem fim,

o eterno começo,

a vida.

 

Vem Vida, vem sim,

desfaço-me em ti,

venho-me em ti,

dou-te o tutano do corpo,

não guardo nada.

Batem à porta.

Conheço bem o toque.

É ele, o poema.

 

Inocente e límpido,

sem ser chamado,

sem o terem desejado,

cresce no íntimo,

irrompe sereno, aparece, é.

 

É por isso que não sou poeta.

Se o fosse, deixaria as águas calmas,

teria lá a folha em branco, a dor,

quereria gerar sozinho,

parir sem macho,

fazer das tripas poemas,

e abortar por fim um molusco ofuscado,

que, com pompa, circunstância e trompetas,

chamaria, solene... de arte.

 

É por isso que não sou poeta.

Num dia ou noutro o ar vibra,

a pomba desce e há o frémito,

o suave tremer de quem conhece a hora,

de quem, noutras horas, muitas horas,

sentiu o frémito, a erupção,

e deixou que a brisa soprasse e ele fosse vela,

vela enfunada por caminhos inusitados,

que, por mais perto que o levem, dão sempre ao dia o obrigado,

e o sono feliz das vidas que valem a pena.

Os trovões, amor,

ecoam já ao longe...

 

Há sol hoje no meu corpo,

sento-me com ele, recebo-o,

ouço trovejar e abro-me ao sol.

 

Que eu saiba, amor,

amar o sol como amei os trovões.

 

Sinto-me virgem assim,

fresco na manhã que corre.

 

Que ame tanto os trovões quanto o sol,

que os viva de inteira mente,

ao dispor do senhor do tempo.

 

Amo o tempo e o senhor do tempo,

não mais ontem que hoje,

não mais hoje que ontem.

 

Sempre.

Amo a sombra das paredes frescas

depois da tarde de sol a pique.

Amo o fogo quente das achas na lareira

depois do frio que queima na rua.

 

Sim e não,

noite e dia,

roda da vida,

girândola de contrastes,

embriaguez dos sentidos.

 

Digo sim e não,

não agarro,

na impermanência persisto,

a beleza acontece.

Desculpa

 

 

A chuva cai, querida.

 

O Verão despede-se com lágrimas de crocodilo,

e lava as casa, a rua, o ar.

O pó escorre agora para as sargetas

e o dia nasce amanhã mais limpo e mais fresco,

a chamar-se Outono.

 

Sabes querida,

tu chamas-me sempre para conversas urgentes,

e eu oiço-te cioso mas conheço o fim.

 

Peço-te, por favor, inventa outra história,

um guião diferente.

Arranja-me um papel bonito, feito para mim,

onde eu possa sorrir.

 

Deste, confesso-te, estou farto, mesmo farto,

já não posso mais.

Conheço-te bem,

podes fazer diferente,

fico à espera.

 

E não te esqueças,

ainda te amo, amo-te sempre, talvez desde sempre.

 

Sei que te zangas comigo...

Mas perdoa-me se, para ti,

apenas tenho este diamante para dar,

grande e azul.

 

Querias pão, eu sei,

mas pão, meu amor,

não tenho para te dar.

Dou-te este diamante,

grande e azul,

muito grande e azul.

 

Desculpa.

Nos tempos do Vento,

o ar inunda e transborda a taça,

e o coração abençoa e ama sem limite,

ama a vida e a casa da vida,

o céu, a árvore, o pão.

 

No tempo do Vento e da entusiasta viagem,

há uma raiz que se dilata e se entranha na terra,

a cingir com poder a árvore à vida,

e a conceder-lhe ramos altos,

ramos mais altos ao céu enlaçados,

ao céu que os há de levar.

 

Amas... o que sabes perder.

Carta da ancestral mãe Europa ao povo inglês após o atentado de Manchester

 

 

Queridos filhos meus:

Choro ao vosso lado o sangue que lava as ruas.

O vosso sangue é o meu sangue,

A vossa dor a minha dor.

 

Peço-vos, meus filhos ingleses,

Ficai perto da nossa ancestral família,

De todos os meus filhos e filhas.

Unidos sereis fortes na luta e certos na vitória.

Unidos celebraremos sem fim a conquista,

Será gozosa e rica a paz que virá,

Árvore repleta de frutos maduros.

 

Mantei-vos unidos, meus filhos,

O mundo precisa de vós.

Vós sabeis, pela via régia da dor,

O que vale paz, pensamento, justiça, igualdade, democracia...

 

Fizestes tanta guerra que percebeis o valor da paz.

Tanto que vos matastes nos campos...

Tantas grilhetas de escravos mostraram-vos a cor da liberdade.

Tantos escravos...

Tanta grito de mulher violada despertou a palavra respeito.

Tantas mulheres...

Tantas cabeças decapitadas fizeram-vos pensar.

Tantas cabeças...

 

O mundo precisa dos meus filhos, dos filhos da Europa,

Desta mãe que quer a todos, e a todos unidos.

Dias de paz virão,

E de mãos dadas desceremos o Tamisa, passearemos pelos Campos Elísios, atravessaremos Berlim em festa.

 

Mas agora é hora da guerra,

Lutemos juntos, celebraremos mil vezes mais.

Mantei-vos juntos na hora aflita,

Será grande a hora tranquila.

 

O mundo precisa de vós meus filhos,

Da vossa sabedoria tão arduamente conquistada.

 

Prossegui, juntos, até ao fim.

Sois sangue do meu sangue, carne da minha carne,

Filhos da mesma mãe.

Glória

 

 

Não vou à casa da glória de barrete na mão,

não lhe chamo senhor nem amo.

Porque me daria os seus bens?

 

Não procuro na feira uma banca,

não grito em pregões a mercadoria.

Porque teria a sacola repleta de ouro?

 

Fico só na praia, oiço as ondas e deixo ir os barcos que passam.

Devo chorar?

Bendigo!

Deponho os meus poemas no altar do mundo.

Como hóstia e vinho.

A ti cabe consagrar.

 

Ofereço-me em banquete.

Oiço rasgar a minha carne,

beber o meu sangue,

e aceito.

 

Deponho os meus poemas no altar do mundo,

a minha carne, o meu sangue.

Dou o íntimo do íntimo,

ofereço o meu corpo a quem o quiser,

não cobro.

 

Vem, convido-te!

Sobe a este altar.

Pede ao Espírito que desça,

Sol que dá vida,

e mostra o belo e o bom,

a tornar santas as palavras que escrevi.

 

Deponho os meus poemas no altar do mundo.

Como hóstia e vinho.

A ti cabe consagrar.

marioresende@almasoma.pt